A publicação combina trechos do clássico Os sertões, de Euclides da Cunha, com fotos que Bisilliat produziu entre 1967 e 1972 no Nordeste brasileiro. Na obra, imagens de cenários e, principalmente, personagens do sertão dialogam com as palavras de Euclides, escritor homenageado na Flip deste ano, responsável pelo principal relato sobre a guerra de Canudos, um dos conflitos mais violentos do Brasil oitocentista.
A versão lançada pelo IMS conta com dois novos posfácios escritos por Miguel Del Castillo, curador da Biblioteca de Fotografia do IMS Paulista e da exposição Fotografia e literatura nos livros de Maureen Bisilliat, e por Walnice Nogueira Galvão, professora emérita aposentada da USP, uma das principais estudiosas da obra de Euclides da Cunha.
As imagens que compõem Sertões: luz & trevas foram produzidas pela fotógrafa em diversas viagens, sobretudo, pelos estados do Ceará, de Alagoas e da Bahia, com o incentivo de uma Bolsa do Guggenheim e para recolher arte popular para a loja/galeria O Bode, que ela mantinha com o marido e um amigo. Munida da câmera a tiracolo, Bisilliat aproveitava para fotografar o que encontrava em seu caminho.
Para a primeira parte do livro, ela refotografou cópias em papel e folhas de contato de algumas dessas imagens, lançando mão de luzes coloridas e outros efeitos. Na segunda parte, estão os registros em cores, principalmente de cenas domésticas, e há uma seção final com fotos noturnas, feitas em festejos populares e religiosos.
Inicialmente, o intuito era que as imagens fossem acompanhadas por um prefácio de Ariano Suassuna e textos de seu romance A pedra do reino. A fotógrafa chegou a mostrá-las ao escritor que, inspirado pelo trabalho, redigiu um outro livro, de quase 200 laudas, transformando Bisilliat em personagem. Segundo a fotógrafa, seria impossível agregar um texto de tamanho volume ao seu material, o que a incentivou a pensar em uma alternativa: o “sertão histórico”, como ela o descreve, retratado na famosa obra de Euclides da Cunha.
Bisilliat extraiu trechos das duas primeiras seções de Os sertões – “A terra” e “O homem” – e os combinou às imagens que produzira no Nordeste. Ela conta que datilografou os excertos que selecionara previamente, cortou-os em pequenas faixas de papel e os deixou em cima da mesa, para ir compondo o livro. “Às vezes vinha um vento e os espalhava, e de repente estava lá o Euclides todo no chão!”, lembra.
No processo de concepção do livro, Bisilliat não reduziu a imagem a uma mera ilustração do texto. Ao contrário, criou diálogos entre ambos, unindo a sua perspectiva à do escritor. Dessa junção, nasceu uma nova obra, composta por justaposições, equivalências e dissonâncias.
Num dos posfácios da nova edição, Walnice Nogueira Galvão reflete sobre esse procedimento: “A imaginação artística da fotógrafa interpela os textos por canais inusitados, que vão do questionamento à crítica, passando pelo compartilhar de emoções, pela solidariedade aos seres humanos, pelo apego à Terra e a todos os viventes, pela empatia com os sertanejos, pelo respeito a suas crenças e a sua resistência inquebrantável”.
Oitenta anos separam a publicação das duas obras. O sertão registrado por Bisilliat, no entanto, se aproxima em muitos aspectos do narrado por Euclides: a natureza, forte e ao mesmo tempo hostil, as desigualdades sociais, mas também a valorização da cultura sertaneja. A aliança entre texto e imagem gera, assim, um trabalho poético e engajado, como ressalta Miguel Del Castillo: “Neste livro e, em boa parte de sua produção, ela une o social e o estético, conseguindo se esquivar do panfletário e do piegas – como nas melhores obras de arte”.
Entre os livros que publicou, este é o que Bisilliat considera mais forte e atual. Em 1984, uma editora suíça publicou uma versão em alemão da obra, com tradução de Berthold Zilly e posfácio de Mario Vargas Llosa; conta-se que foi um dos grandes incentivos para que Os sertões fosse posteriormente publicado naquele idioma.